Entre sem bater. 

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Foice.

  Roberto acordou cedo para mais um dia de trabalho, foi direto para o banheiro, chuveiro. Cabeça, braços, tronco, enxagua, cintura para baixo, enxagua. Seus vinte e um anos pareciam muito mais que isso. Era um dos muitos tipos brasileiros: ligeiramente alto, branco, mas a essa altura não tão branco, rosto europeu, com aquele traço de índio. Seu chefe estaria no trabalho hoje, gosta muito dele e precisava muito conversar, não conseguia mais manter aquilo dentro de sua cabeça.

   Chegou no horário de sempre e foi direto falar.
 - Não aguento mais Luís. Nasci num mundo que adora meu estereótipo. Fui feito para trabalhar, desde pequeno, otimizar meu tempo parecia a coisa mais óbvia e necessária a se fazer, sempre tentei tratar o mundo a minha volta com coerência e infelizmente fui gostar dessas coisas do mundo moderno daqui do trabalho, a tecnologia é deslumbrante.
 - Não entendo você, Roberto, sempre foi realmente um excelente funcionário aqui, nunca vi alguém subir de cargo tão rápido, mas isso parece ser um problema, o que foi?
 - Acontece que não quero viver assim. Trabalho, vivo meus horários no ritmo de um computador, para ter um salário que me permita alguma tranquilidade e, apesar desse sistema, tenho que viver num mundo cheio de pessoas que não possuem o direito de sentir o mínimo de felicidade, satisfação, prazer. - Luís foi pegar um copo de água, ouvia Roberto atentamente, que continuou.
 - Esse sacrifício, se ao menos possuísse algum objetivo, mas qual é o objetivo? Desenvolvimento? Não preciso dele. Sou um admirador da tecnologia em minha volta, mas esse mundo não faz sentido. Obrigado pelas sensações, mas chega. Destruam essas malditas cidades, vamos viver num campo onde tudo é de todos, construamos nossos lares, de madeira, tijolo, o que for, plantemos nossa comida, e nos preocupamos com isso e pronto. Claro que eu queria um computador com internet na casa de cada um, a cultura continua sendo o legado mais precioso e fascinante do homem, deixe-me ver as obras musicais, literárias, artísticas das pessoas em volta do mundo e basta. Se eu quiser visitar alguém, que seja de cavalo, não quero ver mais um maldito carro na minha frente, não aguento mais esse sistema, ele é sujo Luís. Ele depende do nosso sacrifício, eu tenho menos de 100 anos para viver nesse lugar que é capaz de despertar algum sentimento interessante em mim, por que eu preciso gastar meu tempo com isso? Eu não aguento mais.

  Luís que prestava atenção em cada palavra, esperou o final e deu um forte abraço em Roberto, que com os olhos molhados e o coração acelerado retribuiu o abraço. Luís olhou bem por alguns instantes para Roberto e falou.
 - Você percebe o problema nas suas palavras, não percebe Roberto? A distância do que você diz da realidade, o que podemos fazer? Eu conheço você, sei que sabe das milhares de imperfeições nas suas ideias, no seu pensamento, não sabe?
  Roberto concordou com um aceno discreto e lento de sua cabeça.
 - Por que não me mato então? Por que permito passar por isso?
 - Como pode um jovem como você, tão adaptado a esse mundo pensar em se matar?
 - Não queria ser adaptado, queria apenas viver e aproveitar meu tempo aqui. Poder fazer minhas escolhas, qualquer uma delas.

  Luís permaneceu em silêncio e Roberto foi embora para sua casa. Sabia que ainda teria seu emprego quando voltasse amanhã ou depois, mas nem pensava nisso, nesse momento só pensava no Universo e na sua imensidão descoberta, lembrando que ainda existia aquela que não conhecemos, distraia sua cabeça com esse pensamento fascinante para esquecer da sua vida.

Posted via email from André's Posterous

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bla, bla, bla...